RECOMENDAÇÕES AO MÉDICO QUE PRATICA A PSICANÁLISE – UM RESUMO
- março 22, 2020
- by
- Paulo Nobre
Sabe aquela sensação quando a gente pega um texto ou livro para ler pela segunda vez (terceira, quarta ou enésima vez) e tem a sensação de que o texto mudou? O pressentimento de que aquelas palavras ganharam outro sentido e podem ser interpretadas de uma forma diferente? Pois é, na verdade somos nós que mudamos ao longo do tempo e os textos nos ajudam a perceber isso. Isso é legal porque tira aquela nossa ilusão de permanência do eu que muitas vezes pode até nos adoecer. Enfim, li o texto Recomendação ao médico que pratica a psicanálise (FREUD, [1912] 2010) e foi isso que percebi. Talvez seja isso que tenha me motivado a fazer um breve resumo do texto, apesar de sua aparente simplicidade, conteúdo técnico e caráter mais objetivo. Então, vambora.
Freud procura fazer um texto com nove itens específicos que devem ser seguidos quando da prática da psicanálise. Escolhi fazer um resumo desses itens sem pontuá-los especificamente, pois ao ler o texto, percebe-se que uma convergência a um ponto comum e talvez um dos mais importantes referentes à técnica psicanalítica. A associação livre. Sabe aquela hora que o analista solicita ao paciente que ele fale as coisas à medida que elas vão surgindo na sua cabeça, sem se preocupar em censurar ou reprimir aquilo que está surgindo? Pois então, ele está pedindo ao paciente para fazer a associação livre. Posso fazer um texto explicando sobre associação livre, como Freud teve essa ideia e outras coisas mais, mas fica para um outro momento. O que posso dizer agora é que de “livre” essa associação não tem muita coisa!
O nosso foco aqui é ver como isso implica na prática do analista.
Bem, Freud diz nesse texto que o analista deve manter uma postura específica diante do relato do paciente, denominada atenção flutuante. Não focar em algo específico que a pessoa esteja relatando ou deliberadamente procurar algo no discurso do paciente que possa se enquadrar em alguma teoria ou algo do tipo. Trata-se de “notar igualmente tudo”, entregar-se à “memória inconsciente”. Portanto, é um processo de colocar o seu inconsciente a disposição do inconsciente do paciente, uma “conversa” entre inconscientes.
Mas como conseguirei acessar a minha memória inconsciente?
Pois é, fazendo análise, ou como diria Freud, passar por uma “purificação psicanalítica”.
Ao colocar o inconsciente a trabalho, depreende-se disso então uma série de aspectos que são colocados por Freud em forma de recomendações, ou seja, levando em consideração a atenção flutuante, essas outras recomendações passam a fazer sentido: evitar tomar notas do que o paciente relata no momento da sessão; não se preocupar em decorar dados como datas, nomes, lembranças e pensamentos; se cuidar para não ser tomado por ambições de curar ou educar o paciente. Todas essas recomendações são implicações da entrega à memória inconsciente.
Mas ainda sobraram outras coisinhas…
Para evitar a interferência do trabalho consciente no caso, Freud propõe não trabalhá-lo cientificamente até que ele se conclua, o que não seja também um aspecto relacionado à atenção flutuante.
No sentido de acolher o paciente, diminuir suas resistências e fazê-lo perceber a emergência do próprio conteúdo inconsciente, como um espelho, aconselha-se evitar colocar aspectos de sua individualidade na sessão, ou seja, falar de si mesmo e evitar “pôr a descoberto o que lhe é inconsciente”. Porque, convenhamos, ir no terapeuta ou analista que fala de si não é nada agradável.
Outro ponto importante colocado por Freud é o de fazer sugestões ao paciente para meditar ou refletir sobre o que está falando, ou seja, impor-lhe tarefas, pois ele deve aprender por si só que o foco e a atenção não são os caminhos para solução de suas questões, mas sim permitir o fluir de suas ideias e pensamentos. Por último, mas não menos importante, ele sugere não procurar aprovação dos pais ou parentes do paciente para o tratamento e também se mostra bastante cético quanto ao êxito no tratamento psicanalítico de parentes próprios do analista. Essa última diz de um certo distanciamento que é saudável entre paciente e analista. Por distanciamento não quero dizer que o analista tem que ser aquela figura fria, inalcançável, mas um distanciamento que permite a distinção do que provém do paciente e o que é do analista, evitando misturas, uma distância que permite falar sobre o paciente e não do lugar paciente
Lembro de ter lido esse texto há uns dois anos e tinha ficado mais atento às recomendações de forma isolada, como que numa receita de bolo. Hoje percebo que são desdobramentos de preceitos psicanalíticos básicos, seja a associação livre, a formação do analista que inclui a própria análise, a supervisão e os estudos.
Enfim, é isso, uma obra escrita há mais de cem anos ainda com grande impacto na nossa prática cotidiana refletindo a solidez da psicanálise enquanto técnica, discurso e prática capaz de abordar questões caras à condição humana.
BIBLIOGRAFIA
FREUD, Sigmund. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia (“O caso Schreber”), artigos sobre técnica e outros textos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. v. 10.