Resiliência, psicanálise e COVID-19
- abril 03, 2020
- by
- Paulo Nobre
Estranho falar de psicanálise e resiliência, até mesmo porque esse não é um conceito trabalhado na literatura psicanalítica. Mas recentemente me deparei com os conceitos de rêveire (Bion) e preocupação materna primária (Winnicott) descritos no artigo “Resiliência e Psicanálise: aspectos teóricos e possibilidades de investigação”, de autoria de Cabral e Levandowski (2013), que tentam abordar o tema da resiliência através do viés da psicanálise. Eu vou falar como entrelaçamento de conceitos é realizado e depois abordo o tema da COVID-19.
No período de gestação e nos meses subsequentes ao nascimento do filho, a mãe é tomada por um estado denominado preocupação materna primária, fazendo com que ela volte praticamente todas suas atenções ao cuidado e proteção do bebê. Sob esse estado, a mãe funciona como um elemento mediador entre as experiências que ocorrem no seu entorno e o bebê, convertendo-os em elementos “elaboráveis”, configurando o que se denomina por rêveire. A junção destes dois fatores compõe um cenário de constituição psíquica da resiliência do bebê e evita a ocorrência do denominado traumatismo hiperprecoce. Um bebê submetido a esse processo de maneira razoável será capaz de lidar com situações adversas ao longo de sua vida com o uso de ferramentas psíquicas mais “elaboradas”, como sublimação, a criatividade, o humor e o altruísmo, em detrimento da passagem ao ato, comportamento passivo agressivo e a projeção (CABRAL, LEVANDOWSKI, 2013). Além do fato da resiliência ser construída na relação pais-bebê, as autoras ainda apontam a experiência psicoterapêutica como uma possibilidade para criação destes recursos.
A COVID19, doença causada pelo novo Corona vírus, e seus desdobramentos de fato atuam como uma excitação exterior capaz de desestruturar um aparelho psíquico. O isolamento social, a perspectiva de colapso econômico, a desestruturação social, a rápida disseminação da doença e a perspectiva de morte são alguns dos fatores capazes de desestabilizar o indivíduo e desencadear processos psicopatológicos de variada ordem. O comportamento resiliente, portanto, seria o de encontrar formas mais elaboradas para lidar com esta situação. No entanto, há de se destacar um ponto que também nos é apresentado através da psicanálise: a singularidade do sujeito. A maneira como esse sujeito se posiciona no mundo, o que ele espera dele e qual a perspectiva dele acerca dos acontecimentos à sua volta também será determinante na sua adaptação a um ambiente de adversidade. Outro aspecto a ser considerado é a condição material (concreta) deste sujeito no ambiente. Ou seja, a realidade social, cultural e econômica em que ele está inserido. Por exemplo, como um imigrante ilegal africano na Europa irá fazer isolamento social se nem casa ele tem? O mesmo pode ser pensado para uma pessoa em situação de rua. Por mais que estes sujeitos tenham tido a oportunidade de ter pais acolhedores, protetores, a realidade material vigente irá contribuir para a sua desestruturação psíquica de uma maneira mais contundente do que para aqueles que possuem um lar.
Desta forma, por mais que haja um histórico positivo de constituição psíquica que forneça resiliência a esse sujeito, isso não é garantia de que ele logrará atravessar “ileso” um período de maior hostilidade do ambiente. Assim, a resiliência é, certamente, auxiliadora no processo de adaptação a ambientes desestruturastes, mas a adaptação abarca aspectos de um processo multideterminado por variáveis que vão desde condições sociais, culturais, históricas, concretas, relacionais até a singularidade do sujeito.
Referência:
CABRAL, Stela Araújo; LEVANDOWSKI, Daniela Centenaro. Resiliência e psicanálise: aspectos teóricos e possibilidades de investigação. Rev. latinoam. psicopatol. fundam., São Paulo , v. 16, n. 1, p. 42-55, Mar. 2013 .